À primeira vista, parece justo: se alguém deve e não paga, o credor tem o direito de recorrer à Justiça. Mas o que parecia simples, direto e amparado pela lei vem ganhando reviravoltas inesperadas em decisões judiciais recentes — e isso está deixando muita gente de queixo caído, principalmente os bancos e financiadoras.
Muitos brasileiros que tentam reaver valores devidos por inadimplentes estão enfrentando um novo obstáculo: a exigência de esgotar todas as tentativas possíveis de localizar o devedor antes de executar medidas mais duras, como penhora ou leilão de imóveis.
O problema é que, para o Judiciário, não basta fazer o mínimo. E, como mostrou um recente caso em Goiás, quem tenta cortar caminho está sendo duramente bloqueado — mesmo com tudo documentado.
Mas a questão vai muito além de um simples processo. Ela escancara a diferença entre agir “dentro da lei” e seguir todos os princípios constitucionais, como o direito à ampla defesa. E isso pode mudar completamente a forma como execuções de dívidas ocorrem no país daqui para frente.

Três visitas não bastam, diz juiz — mesmo com imóvel em leilão
O episódio que acendeu esse debate aconteceu em Anápolis (GO), onde o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás suspendeu o leilão de um imóvel avaliado em R$ 1,46 milhão.
A razão? O banco credor não teria cumprido todos os passos exigidos para tentar localizar a devedora antes de lançar mão da intimação por edital — um instrumento considerado extremo no processo civil brasileiro.
Segundo o juiz Rodrigo de Castro Ferreira, que assinou a decisão, o banco realizou apenas três tentativas de visita em horário comercial. Nada de fins de semana, nada de tentativas fora do expediente ou por outros meios, como intimação por hora certa, contato telefônico ou correspondência com aviso de recebimento.
E é exatamente aí que mora o problema. O STJ já havia fixado entendimento no Recurso Especial 1.906.475 de que tais esforços são insuficientes para configurar o “esgotamento das tentativas de localização” — algo indispensável para autorizar o uso do edital.
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Intimação por edital não pode ser atalho: é o último recurso na Justiça
Apesar de muito utilizada por credores apressados, a intimação por edital não pode ser aplicada de forma automática. A legislação brasileira é clara: ela só é permitida quando o devedor está em local ignorado, incerto ou inacessível — conforme o artigo 26, §4º da Lei 9.514/1997, que regula a alienação fiduciária de bens imóveis.
No caso de Anápolis, a certidão cartorária que embasava o edital sequer mencionava essas condições, o que tornou o procedimento — mesmo com aparente legalidade — juridicamente inválido.
O magistrado ainda reforçou que a devedora teve seu direito à ampla defesa comprometido, e que a execução da dívida não pode atropelar garantias constitucionais, como o contraditório e o devido processo legal. Ou seja, não basta seguir o trâmite processual — é preciso seguir o espírito da lei.
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Prisão por dívida? Só em um caso muito específico na Justiça
E se você pensa que, diante da frustração com a inadimplência, prender o devedor poderia ser uma saída, é melhor tirar o cavalinho da chuva. A Constituição Federal do Brasil proíbe prisão por dívida civil, com exceção de um único caso: falta de pagamento de pensão alimentícia.
Mesmo em casos de grandes somas, a lei protege o inadimplente de medidas extremas como a privação de liberdade. Isso não significa que o devedor sai impune — bens podem ser penhorados, contas bloqueadas e o nome incluído em cadastros negativos. Mas tudo isso só é válido se respeitados todos os meios legais de notificação e defesa.
É por isso que decisões como a de Anápolis chamam tanto a atenção. Elas revelam que o Judiciário está cada vez mais atento não apenas ao cumprimento das leis, mas à forma como elas são aplicadas. E isso exige mais cautela — e responsabilidade — de quem está no lado de quem cobra.